quarta-feira, 26 de maio de 2010

CURRÍCULO

Os múltiplos conhecimentos: saberes do aluno, saberes do professor; saberes locais, saberes universais

Introdução
A escola está tão profundamente enraizada em nossas vidas que nos parece que ela
sempre existiu e é a única forma de preparar e formar os jovens para participarem como
membros atuantes de suas comunidades. Mas não é bem assim. Por muito tempo, e
mesmo ainda hoje, há sociedades em que todos os conhecimentos necessários à participação
na vida social são aprendidos por meio da convivência com os mais velhos. No
cotidiano, são compartilhados saberes, fazeres, conceitos e percepções do mundo. Ali,
se tecem e se revelam os relatos do passado, as crenças e os conhecimentos necessários
à vida prática, à produção material e simbólica, que tornam meninos e meninas integrantes
de seu grupo.
Esta maneira de integrar os neófitos ao grupo social em que viviam deu lugar, num longo
processo de estruturação, às instituições específicas destinadas a educar as crianças:
as escolas. Da aprendizagem pelo compartilhar da experiência, chega-se às instituições
escolares, espaços fechados material e simbolicamente. Ao se constituir, a escola2 fechase
ao mundo exterior, por meio de fronteiras físicas e simbólicas. Ela nasce, assim, da
ruptura com o local, num processo que anula os particularismos nos níveis social, cultural
e político. É exemplo disso a escola francesa, que já no início do século XIX implantava o
projeto de educação pública, laica e gratuita para todos os cidadãos, que impôs o idioma
nacional e proibiu que seus alunos falassem os diversos dialetos de suas comunidades.
Uma língua comum, conteúdos iguais, metodologias idênticas garantiriam a formação dos
indivíduos nos Estados Nacionais.
Se, com o passar do tempo, a Escola foi reivindicada por todos como meio de inserção,
participação social e de igualdade entre os desiguais, sua vocação homogeneizadora
excluía a diversidade e as experiências culturais dos grupos, sobretudo dos pobres e
desfavorecidos. Dos conteúdos escolhidos para serem aprendidos indistintamente pelos
futuros cidadãos”, nada da experiência familiar e comunitária merecia menção. Tradições
culturais, saberes populares, narrativas transmitidas de geração em geração estavam banidos
da escola. Uma distância intransponível separou estas narrativas dos discursos escolares
apontados para o futuro e pelo desejo de progresso.
O modelo da produção em série, do controle do tempo, dos conteúdos previamente
definidos, divididos em unidades, transmitidos por um mestre, perdurou por gerações. É
essa escola que muitos de nós ou de nossos pais frequentamos. Ali, transmitir conteúdos,
decorá-los, devolvê-los em provas e em trabalhos escolares integravam o que se compreendia
por ensinar e aprender3. Um professor que tudo sabe a informar um aluno que
tudo desconhece, eis a imagem desta escola, agência de um projeto civilizatório maior,
em que a memória e as experiências culturais de educadores, alunos e suas comunidades
pouco contavam, já que conteúdos e metodologias impostos a todos marcavam o tempo
e o espaço escolar4.

A escola, instituição em mudança
Este modelo de escola transmissiva acaba por se esgotar. Incapaz de realizar o idealrepublicano de educação compensatória, homogeneizadora, que garantiria a todos os instrumentos para o exercício da cidadania, a escola entra em crise. Dentre os fatores paraa crise, estão também presentes as novas tecnologias de comunicação e informação, que alteram a lógica da produção e da distribuição de informações e a construção dos saberes. A escola detentora da transmissão de um certo conjunto organizado de informações vê-se diante de uma clientela que tem acesso a informações de origem e qualidade altamente discutíveis, recebidas de maneira fragmentada, veloz e, via de regra, prazerosa.
A informação não é mais privilégio das instituições educativas e pode chegar aos educandos em diferentes lugares e situações. O controle sobre a informação e sobre os significados a que os alunos têm acesso não será mais privilégio da escola, nem do professor. Não há mais o controle sobre conteúdos e interpretações como houve no passado.
Sem ter realizado sequer o projeto de garantir a todos os brasileiros o acesso à educação, com qualidade, a escola está no centro das discussões que incluem o seu papel social, os conteúdos que veicula, os processos e seus agentes. Também estão em discussão as suas relações com as comunidades em que se insere e com a sociedade como um todo.

Novos contextos, novos papéis, novos instrumentos
Se a questão da Educação se resumisse ao acesso às informações, estariam resolvidos todos os problemas da formação de jovens, visto que nunca na história da humanidade houve tanta disponibilidade de informações, acessíveis a um número crescente de pessoas.
Ocorre que, numa sociedade em rápida mudança, as informações necessárias à vida cotidiana, à participação social e ao mundo do trabalho ficam obsoletas e se renovam em espaços de tempo cada vez mais curtos. Nesta perspectiva, a demanda por reformas urgentes da instituição escolar está presente em todo o mundo e tem como foco formar indivíduos para uma sociedade midiática, em permanente transformação5. A ideia da formação inicial, com a transmissão dos saberes que serão válidos e necessários por toda a vida, dá lugar à necessidade imperativa de desenvolver competências e habilidades que possibilitem aos jovens, porém não só a eles, operar com as informações que se renovam a cada minuto. Isto envolve mais do que ter acesso à informação. Inclui a necessidade de
operar com a informação – pesquisar, processar, construir significados, colaborar e criar.
Ser capaz de informar-se e formar-se durante toda a vida é condição de participação social e desafio para a escola, para educadores e seus alunos.
A possibilidade de operar nestes novos contextos passa, necessariamente, pela compreensão dos novos modos de conhecer, constituir e operar com informações. Não há, como no passado, a  possibilidade de totalidades e de garantir o acesso a informações de forma estruturada e organizada. Porém, se no passado os meios de comunicação propiciavam que poucos falassem para muitos, hoje é possível que muitos falem com muitos por meio de redes e espaços virtuais, em que estão disponíveis instrumentos que possibilitam a qualquer pessoa compartilhar percepções, experiências e vivências. 
Nesse espaço  virtual, cada vez mais conectado e abrangente, é que emergem, como nunca, justamente as experiências particulares, de indivíduos comuns que, sozinhos ou articulados em grupos, passam a ter voz, podem compartilhar o que sabem, o que sentem e como enxergam o mundo. Numa sociedade global, é possível ter acesso a experiências locais. É possível a autoria e a coautoria.
É bom lembrar, no entanto, que a simples disponibilidade das informações e dos instrumentos para que nos tornemos autores não é, por si só, garantia da construção do conhecimento, uma vez que, para que este processo se realize, entram em jogo habilidades e competências complexas, com as quais é imperativo que a escola se comprometa.
É nesse quadro que atuamos e é nele que, como educadores, precisamos forjar caminhos, lembrando que, se a aquisição de dados dependerá cada vez menos de nós, por outro lado nos cabe enfrentar o desafio de ajudar o aluno a interpretar dados, relacioná-los e contextualizá-los6, a partir tanto de parâmetros globais, como locais, num jogo incessante, dinâmico, entre os saberes da ciência, da filosofia, da arte e os saberes da experiência, os saberes formais e não-formais, os saberes universais e os locais.

Caminhos possíveis
Neste panorama de intensas transformações – aceleração do tempo, revolução tecnológica e de rupturas abruptas com modos tradicionais de viver e de conhecer –, como pode a escola possibilitar que alunos e educadores operem com informações e construam conhecimentos?
Revalorização dos saberes da experiência e da diversidade cultural
Aposentadas as cartilhas de toda a sorte, apontamos alguns elementos, presentes em experiências educativas que podem iluminar educadores e educandos nestes novos tempos.
O processo a ser empreendido passa, necessariamente, pela (re)valorização da experiência de educadores e alunos, suas vivências e a diversidade das culturas em que se inserem. Ao abandonar o modelo do ensino bancário, é possível empreender um processo de diálogo e de colaboração na busca por informações que tenham significado para o grupo e que lhes permitam conhecer e dialogar com a realidade em que vivem. Abandonasse a ideia de um saber pré-definido e preexistente a ser revelado, por meio de atividades escolares repetitivas, e instaura-se um processo coletivo em que a escola é compreendida como espaço de produção de saberes. A partir da pesquisa e do tratamento das informações dispersas nos diferentes suportes materiais, virtuais e também fruto das vivências e memórias das pessoas do bairro, da cidade, são reunidos os dados, matéria-prima para o trabalho escolar. Ele envolve coleta, processamento e produção de novas informações, agora organizadas a partir do olhar cuidadoso e da ação de educadores e alunos.

A cultura local e a global
Elementos da cultura local e práticas sociais das comunidades em que a escola se insere se configuram como excelentes focos para o trabalho de pesquisa a partir da escola.
Eles possibilitam aos alunos compreender os processos de produção das informações, pelos diferentes atores sociais, o que contribui para a construção de um olhar crítico para as informações que lhes chegam por meio dos diferentes meios de comunicação. Permitem, também, reconectar realidades locais com outros contextos, outras culturas e fazer do aluno autor. Ele tem acesso e dá acesso às informações com que opera7.

Projetos
Dentre as diversas modalidades de organização do trabalho escolar, uma pedagogia centrada nos alunos como um coletivo, que respeita diversidades e está organizada em torno de projetos8 de pesquisa, altera a lógica da transmissão dos conhecimentos. A pedagogia de projetos parte do princípio de que o processo de conhecer e aprender integra diferentes áreas do conhecimento e que a aprendizagem não ocorre somente na escola.
Ela proporciona ao aluno uma aprendizagem integradora das diferentes áreas, num processo de trabalho que envolve alunos e professores em torno de objetivos e questões que fazem sentido para todos. O professor não detém sozinho o saber, as etapas e o ritmo do que se vai aprender. Quebra-se a visão do conhecimento que, para ser apreendido, deve ser fracionado e organizado em disciplinas que pouco ou nada dialogam ao longo da escolaridade.
(...) as diferentes fases e atividades que se devam desenvolver num Projeto ajudam os alunos a serem conscientes de seu processo de aprendizagem”9.

Elaboração e circulação da produção (material e virtual) dos alunos na comunidade e em outros contextos
O processo se completa com a elaboração de produtos (materiais e virtuais) em que as informações coletadas, processadas e criadas podem ganhar circuitos sociais mais amplos que o da própria escola. Por meio de livros, jornais, sites e blogs, entre outros, os alunos inserem o produto do seu trabalho em outros contextos, em que é possível não só a socialização das informações e do processo de trabalho, como novas interações com a comunidade e com outros grupos. O produto resultante do projeto possibilita levar para além do contexto da escola as descobertas e a produção dos alunos. É uma contribuição real dos participantes para a comunidade. Tem uma existência social real e significativa 10. Está na intersecção entre o local e o global.

Passo a passo
Projetos com foco na cultura local podem ser empreendidos com alunos dos diferentes segmentos da escolaridade. Com crianças menores, o foco pode ser as experiências de pais e avós: o brincar, o cozinhar, o festejar. Informações coletadas pelas crianças são compartilhadas no grupo e, coletivamente, pode-se produzir pequenos textos a integrar um livro de histórias, de receitas ou das brincadeiras de ontem e de hoje. Entrevistas com avós podem ser realizadas no contexto da sala. Alunos mais velhos podem empreender pesquisas mais amplas sobre os contextos em que vivem: a história da escola, do bairro e de seus moradores, permanências e mudanças na vida cotidiana. Pode-se pensar, inclusive, na produção coletiva de blogs e fotoblogs que, além de documentar os processos de trabalho, garantem a preservação e a divulgação do trabalho pedagógico, por meio de
produtos que são interessantes para os alunos.
Para qualquer opção de projeto, de longa ou curta duração, é desejável ter em mente os seguintes componentes, partes fundamentais dos processos de trabalho com a cultura local:
.Valorização da oralidade – por meio dos relatos de experiências vividas, emergem a cultura e as vivências de indivíduos e grupos. Ela é fundamental para conhecer valores, percepções e vivências culturais únicas, muitas vezes impossíveis de se ter acesso por outras vias. Dar voz aos integrantes da comunidade e também aos participantes, alunos e professores é, portanto, fundamental.
.Valorização do registro – em projetos voltados para a cultura local, o registro, por meio de textos, desenhos, fotografias, som e filmes, é fundamental, tanto para o grupo documentar suas descobertas como para documentar o próprio processo de trabalho, que envolve educadores, alunos e também membros da comunidade.
.Organização dos registros em produtos – como já dissemos, trata-se da possibilidade de compartilhar as descobertas com a comunidade foco dos projetos, assim como garantir a disponibilidade das informações além dos contextos escolares restritos. Aí se conectam os contextos local e global.
Um mesmo projeto pode desencadear a elaboração de diferentes produtos: um arquivo para a biblioteca com a íntegra do material coletado, um livro com textos e imagens selecionados, um blog que documenta o processo, um site, uma exposição são alguns exemplos de produtos. Eventos em que são compartilhadas as descobertas também têm um impacto positivo na comunidade. Um sarau de histórias coletadas, um banquete com as receitas da comunidade são momentos ricos em que a escola e a comunidade local se encontram e se reconhecem como produtoras de saberes que têm sentido e, portanto, que são valorizados pela escola e pelo mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, M. E. Como se trabalha com projetos. Revista TV Escola, v. 22, mar./abr.
2001, p. 35-38.
CANÁRIO, R. A Escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed, 2006.
CITELLI, A. Educação e mudanças: novos modelos de conhecer. In: ______. (Org.)
Aprender e ensinar com textos. São Paulo: Cortez, 1998.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 3. ed. São
Paulo: Cortez Editora, 1982.
______. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
HERNANDEZ, F.; MONTSERRAT, V. A organização do currículo por projetos de trabalho.
5. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
KESSEL, Z. A construção da memória na Escola: um estudo sobre as relações entre Memória,
História e Informação na contemporaneidade. (Mestrado) ECA/USP, 2003.
LEITE, L. (Org.) Projetos de trabalho: repensando as relações entre escola e cultura.
Cadernos Ação Pedagógica. Belo Horizonte: Balão Vermelho, 1998.
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática.
São Paulo: Editora 34, 1993.
______. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MORÁN, J. M. Mudar a forma de ensinar e de aprender com tecnologias. Transformar as
aulas em pesquisa e comunicação presencial-virtual. São Paulo, 2000. Disponível em: .
Notas:
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1 Passarinho, p. 96.
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2 A escola controlava, de seu interior, as informações necessárias ao projeto nacional, exigindo dos educandos a assimilação e a reprodução de seus cânones (Souza, 2000). Nesse contexto, a experiência e a diversidade pouco valem.
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3 Esta forma de organização da escola “atende a uma concepção cumulativa do conhecimento, na qual o currículo escolar corresponde a um menu de informações transmitidas aos alunos em doses sequenciadas. Sustenta uma lógica de repetição da informação, que está na raiz de uma relação pedagógica de cunho autoritário e que permite reconhecer, na escola, princípios de organização similares à produção industrial de massa baseada no taylorismo” (Passarinho, p. 15).
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4 O acesso aos discursos midiáticos, ininterruptos e fracionados, a disponibilidade de informações, em tempo real, de origens as mais variadas na internet, produziu uma nova (des)organização nas relações humanas. Os conceitos de tempo, espaço e lugar, memória, sociabilidade, função social de indivíduos e instituições estão em discussão. Lembrar, preservar, ensinar e aprender necessitam ser compreendidos dentro de um quadro que leve em consideração essas mudanças. Muda o limite entre emissor e receptor, mudam a maneiras de produzir, organizar e socializar os saberes (KESSEL, p. 64).
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5 MORAN, J. M. Ensino e Aprendizagem Inovadores com tecnologias audiovisuais, p. 29.
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6 “(...) possibilitar ao aluno refletir sobre seus valores e suas práticas cotidianas e relacioná-los com problemáticas históricas inerentes ao seu grupo de convívio, à sua localidade, à sua região e à sociedade nacional e mundial. Uma das escolhas pedagógicas possíveis, nessa linha, é o trabalho favorecendo a construção, pelo aluno, de noções de diferença, semelhança, transformação e permanência. Essas são noções que auxiliam na identificação e na distinção do “eu”, do “outro” e do “nós” no tempo; das práticas e valores particulares de indivíduos ou grupos e dos valores que são coletivos em uma época; dos consensos e/ou conflitos entre indivíduos e entre grupos em sua cultura e em outras culturas; dos elementos próprios deste tempo e dos específicos de outros tempos históricos; das continuidades e descontinuidades das práticas e das relações humanas no tempo; e da diversidade ou aproximação entre essas práticas e relações em um mesmo espaço ou nos espaços” (PCN História – 5a a 8a p. 35).
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7 “O aluno vai desenvolver estudos, pesquisar em diferentes fontes, buscar, selecionar e articular informações com conhecimentos que já possui (...) Este processo implica o desenvolvimento de competências para a autonomia e a tomada de decisões, as quais são essenciais para a atuação na sociedade atual, caracterizada por incertezas, verdades provisórias e mudanças abruptas” (ALMEIDA, p. 35-38).
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8 HERNÁNDEZ, p. 61-64.
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9 (...) o meio mais importante de preservação, em caráter permanente, da produção e dos materiais coletados é a elaboração de produtos e sua veiculação social. São eles que inscrevem as ações da escola no contexto da cultura. Como produto cultural, o trabalho passa a ter uma existência social que transcende os muros da escola. Ao mesmo tempo em que se valorizam os integrantes da comunidade, no seio da qual os produtos foram forjados pela experiência e pelo trabalho, a circulação destes produtos garante a sua inserção e permanência como objetos culturais (KESSEL, p.135).





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