Tecnologia educativa e currículo: caminhos que se cruzam ou se bifurcam?
Há mais de um quarto de século que se vem consolidando uma concepção de Tecnologia Educativa (TE), entendida não como o simples uso de meios tecnológicos mais ou menos sofisticados, mas como uma forma sistemática de conceber, gerir e avaliar o processo de ensino aprendizagem em função de metas e objetivos educacionais perfeitamente definidos. Nesse sentido, a TE interliga-se com a Teoria e Desenvolvimento Curricular (DC), onde encontra a cobertura conceitual para a sua forma de atuação no terreno educativo.
No entanto, no panorama pedagógico ocidental, os estudos adstritos a estes dois domínios estão representados por programas acadêmicos e de investigação perfeitamente consolidados e identificados como espaços de conhecimento pedagógico independentes, às vezes mesmo antagônicos, que, entre outros efeitos, propiciaram a que a TE por um lado e o DC pelo outro, concretizassem propostas teóricas e ações práticas nem sempre coincidentes.
Na era da globalização, em que é inquestionável o poder educativo das TICE, mas em que se sabe também que esse potencial depende do modo como professores e alunos as inserem no processo didático, parece importante lembrar que a tecnologia só faz sentido se usada com intencionalidade, ou seja, se corretamente integrada na concepção e desenvolvimento de todo um projeto curricular. Urge, pois, que estes dois domínios científicos se deem as mãos e definam linhas de atuação concertadas e coincidentes.
Contextualização
No panorama pedagógico ocidental, os estudos adstritos ao Currículo e à Tecnologia Educativa (TE) estão representados por programas acadêmicos e de investigação perfeitamente consolidados e identificados. Em redor de cada um deles, nas diversas partes do mundo, existem grupos de investigação, associações profissionais, publicações, fóruns de debate etc, que os identificam como espaços de conhecimento pedagógico independentes, às vezes mesmo antagônicos, que, entre outros efeitos, propiciaram a que a TE por um lado e o Currículo pelo outro, concretizassem propostas teóricas e ações práticas nem sempre coincidentes (Area, 1996).
Numa tentativa de justificar o distanciamento entre estes dois campos que, aparentemente, tão próximos deveriam estar, Valero Rueda (2001) aponta diversos fatores. O primeiro teria a ver com o fato, inegável na perspectiva da autora, de muitos “curriculistas” considerarem a TE como uma das manifestações “mais genuínas de uma racionalidade de corte técnico-científico das questões educativas” (Valero Rueda, 2001, p. 257); o segundo pelo fato da TE ter sido sempre “excessivamente dependente de teorias afins (…) mas sempre alheias às teorias e práticas do currículo” (ibid); e por último porque, os estudos realizados com média, em particular com audiovisuais e computadores, foram sempre excessivamente empiricistas e carentes de uma fundamentação teórica adequada. Vêm-nos envoltos e fascinados com os computadores, os CD-ROM, e navegando na Internet, mas intelectualmente pobres, porque não capazes de integrar e fundamentar os usos dos meios numa teoria de ensino e do currículo que avalize e dê sentido à Tecnologia Educativa (ibid).
De facto, durante muito tempo, foi inegável a existência de um sentimento, misto de “desconfiança” e “descrédito” por parte de muitos setores dentro das Ciências da Educação, relativamente ao campo científico da TE e a que diversos autores aludiram (Koetting, 1983; Area, 1991; Bartolomé & Sancho, 1994); no entanto, tal como comentava Area (1996), a partir de meados da década de 90, “algo” se começa a modificar: Neste final de século assistimos a um questionamento das atuais áreas do saber, das disciplinas, da forma de organizar e abordar o conhecimento científico. A superespecialização, a fragmentação da realidade pedagógica em parcelas disciplinares distantes está a dificultar e a entorpecer as respostas globais para os novos problemas educativos gerados no seio das sociedades da informação, e em que a educação escolar será a primeira a ser afetada (Area, 1996, p. 2).
De fato, o mundo globalizado em que hoje vivemos originou uma “nova sociedade” com múltiplas denominações na literatura, como seja a de “sociedade da informação”, a de “sociedade em rede”, a “sociedade da aprendizagem”, a “sociedade do conhecimento”, a “sociedade cognitiva” e muitíssimas outras adjetivações em que o denominador comum é o reconhecimento do papel dos novos média tecnológicos (os média do conhecimento) na reconfiguração dos modelos comunicacionais (Blanco, 1999; Silva, 1998; Brigas & Reis, 2001) na construção de uma nova ordem social (Postman, 1994), na reconfiguração do saber e na forma de lhe aceder (Levy, 1994), que exigirão, necessariamente, uma nova “ordem educativa” (Dias, 2000; Area, 2001; Martins, 2001; Pacheco, 2001). Para a construção dessa “nova ordem”, consideram, TE e Currículo terão uma palavra conjunta a dar ideia e é essa mesma ideia que aqui será defendida e justificada.
Onde se cruzam TE e Currículo
Sendo guiado por uma finalidade, um projecto curricular pressupõe sempre uma determinada concepção acerca do que é a EDUCAÇÃO (um ideal educativo), porque é com base numa meta que se concretiza um qualquer projecto; é precisamente aqui, na concretização de uma mesma finalidade educativa, que a TE se cruza com o Currículo, integrando-o, constituindo-se como que o seu braço “operacional” para as questões da comunicação educativa: (A TE) analisa o currículo (prescrito, apresentado e realizado) em termos comunicacionais (códigos, discursos, linguagens, direções e contextos) e preocupa-se em investigar o desenho das estratégias comunicacionais tendo em vista a intervenção no processo educativo com um sentido de otimização, ou seja, conseguir o melhor em função dos objetivos propostos pela comunidade educativa. (Silva, 1998, p. 48).
Nessa ordem de ideias, faz todo o sentido analisar o percurso e evolução do domínio científico da TE articulado com a perspectiva curricular, já que este exercício nos pode ajudar a obter a visão macroscópica da realidade educativa em que a TE se insere e na qual atua. Por isso se justifica uma abordagem, ainda que breve, às principais teorias curriculares salientando a forma como evoluíram acompanhando a reflexão paralela em torno da natureza do conhecimento e da aprendizagem (relação com os paradigmas educacionais), e concretizando, em cada momento desse processo evolutivo, um projecto educativo específico, uma concepção de comunicação (relação com a TE em sentido amplo) que se reflectiu nas diferentes funções/papéis que os média tecnológicos foram desempenhando no processo didáctico (relação com a TE num sentido restrito) (Moderno, 1992; Pereira, 1993; Silva, 1998).
A TE à luz das Teorias Curriculares
Kemmis (1988) propõe uma classificação das teorias curriculares em técnicas, práticas e críticas. As teorias técnicas expressam o currículo como um plano estruturado de aprendizagens centradas nos conteúdos – um “texto” (Pacheco, 2001) ou ainda um “syllabus” (Smith, 1996) –, ou seja, “um corpo de conhecimentos a transmitir e a educação o processo pelo qual esses conhecimentos são transmitidos ou entregues aos estudantes com base nos métodos mais eficientes possíveis” (Blenkin, 1992, p. 23).
O objetivo é a obtenção de um resultado – daí a metáfora do currículo como um “produto” (Pacheco, 1996) –, e as actividades de aprendizagem são organizadas em função de objetivos operacionalizados num plano tecnicista préviamente elaborado e determinado. Tendo em Ralph Tyler (1949) o principal teórico, cuja obra redimensiona o papel da escola numa época em que se exigiam grandes mudanças no movimento curricular nos EUA, após o lançamento do Sputnik, o modelo de objetivos conceitualiza o currículo como um meio para a prossecução de objetivos, especificados em função dos resultados esperados: a finalidade da educação não é levar o professor a desempenhar determinadas atividades, mas a produzir modificações significativas no padrão de comportamentos do aluno. Por isso é tão importante que a definição dos objetivos escolares se refira a modificações a operar no comportamento dos aprendizes (Tyler, 1949, p. 44).
A execução do plano cabe ao professor, qual “técnico” ou “operário curricular”, e o grau de sucesso (ou insucesso) é medido pelo nível de desempenho do aprendiz na consecução dos objetivos, ou seja, na recepção e memorização da informação transmitida pelo professor. A inspiração nos ideais do behaviorismo, expressa claramente na metáfora do “produto”, a ênfase colocada na definição de objetivos comportamentais acabaram por transformar o currículo, e passamos a citar, em longas listas de destrezas triviais, em que o foco estava mais nas partes do que no todo, no trivial do que no significante, numa abordagem educacional que se assemelhava mais a uma lista de compras (Smith, 1996, p. 4).
Na opinião de Branson (1990), em termos paradigmáticos, esta visão do currículo serviu na perfeição ao modelo de comunicação unidirecional característico de um paradigma de transmissão como o representado pela letra A do esquema de Pereira (1993, p. 29) que se reproduz na figura 1: como se pode verificar, num tal modelo o professor é o centro do processo de ensino-aprendizagem, o detentor do conhecimento e da experiência, enquanto o aluno é um mero reprodutor desse conhecimento.
Transpondo para a TE, considera Moderno que se trata do modelo comunicacional característico do ensino tradicional, no qual os média são “concebidos como um conjunto de técnicas destinadas a facilitar a transmissão das mensagens (conteúdos) entre um “emissor que sabe (o professor) e um receptor que não sabe (o aluno)”, (Moderno, 1992, p. 37), assumindo a tecnologia “uma função de controlo do conhecimento e contribuindo para aumentar a eficácia dos processos de aprendizagem” (Pacheco, 2001, p. 70).
Para Pacheco (2001), esta visão do currículo como um “texto” teria caracterizado uma cultura acadêmica da escola com baluarte tecnológico na escrita e na oralidade, concretizada num currículo que impõe não apenas um conhecimento a aprender, mas também as regras para a sua “correta” interpretação: o currículo como um texto, veiculado pelas tecnologias da escrita e da oralidade e tecido pelas lógicas da oferta e da transmissão, é empobrecedor em termos da construção do currículo como processo, pois mantém e reforça a hierarquia da comunicação que existe nos processos de aprendizagem condicionados a tempos, espaços e ritmos específicos” (Pacheco, 2001, p. 70).
A teoria prática assume uma posição radicalmente distinta, porque olha o currículo como um processo, ou seja, “não como uma coisa física, mas como a interação que ocorre entre professores, alunos e conhecimento, ou seja, aquilo que efetivamente acontece dentro de uma sala de aula” (Smith, 1996, p. 6). Caracterizada por um certo discurso “humanista” e uma prática “racional”, esta visão do currículo é o resultado das intensas discussões curriculares que ocorreram na década de 70 (Pacheco, 1996) e também de uma nova forma de encarar o processo da comunicação educativa resultante da introdução e aplicação das teorias sistêmicas, da cibernética e da comunicação ao processo do ensino e aprendizagem (Branson, 1990). Entendida a educação como um sistema (e o ensino como um dos seus muitos subsistemas), são valorizadas as relações entre as entidades (administração, escola, comunidade), as interações entre os intervenientes (o professor e os alunos) e sobretudo o feedback; estavam criadas as condições para a definição de um novo paradigma educacional (modelo B da figura 1) caracterizado por um modelo de comunicação bidireccional, em que o professor, embora mantendo o protagonismo no processo (ele continua a ser a principal fonte do conhecimento), olha o currículo não como um conjunto de prescrições, mas como algo em construção resultante da interação com os alunos, o que implica uma tomada de decisões por parte destes sobre os propósitos, o conteúdo e o processamento do currículo. Rejeita-se assim o plano pré-determinado, dando-se importância à interpretação negociada ou ao ato pessoal de procura de significação. (Silva, 1998, p. 47).
Neste modelo, na opinião de Moderno (1992), o professor é mais um “especialista da comunicação”, e os média passam de auxiliares a “tecnologias educativas” que servem para a comunicação e para a aprendizagem, ao serviço do professor e do aluno, favorecendo as interações, a partilha de opiniões e a busca de interpretações e significados.
Lawrence Stenhouse (1975) captou, melhor que ninguém, a essência desta concepção do currículo como um processo, no sentido de constituir uma tentativa de traduzir uma ideia educativa numa hipótese de trabalho aplicável na prática, que convida mais à critica do que à aceitação (Stenhouse, 1975).
Por último, a ideia do currículo como uma práxis resulta, na opinião de Smith (1996), do desenvolvimento do modelo do processo, acima descrito; mas enquanto este era guiado por princípios gerais e enfatizava a decisão e a criação de significados, nunca revelando qualquer preocupação em tornar explícitos quais os verdadeiros interesses que perseguia, e que intenções o motivavam, agora estes são os aspectos centrais. De fato, se no desenvolvimento do currículo como processo não se explicita, por exemplo, se o processo é movido em função dos interesses coletivos, do bem-estar social ou ainda da emancipação do espírito humano, no modelo do currículo como uma práxis, a ação humana – a prática – não é apenas fundamentada numa teoria, é empenhada (committed) em função de valores políticos, económicos e sociais, ou seja, é uma verdadeira práxis (Smith, 1996).
A influência dos ideais pós-modernistas e das teorias críticas é muito clara. Para Pacheco (1996), o interesse emancipatório da teoria crítica perspectiva uma relação diferente entre a teoria e a prática: é a práxis (a acção reflexiva) que conduz à emancipação e, por outro lado, à crítica da ideologia que enforma todo o projeto curricular. A este respeito, considera Grundy (1987) que “a pedagogia crítica vai muito além de situar a experiência educativa no universo do aprendiz: é um processo que tem em conta ambas as experiências do aluno e do professor, e em que, através do diálogo e da negociação, se vão reconhecendo os seus aspectos problemáticos. (Tal pedagogia) permite, encoraja mesmo, a que o professor e os alunos enfrentem em conjunto os problemas das suas condições mútuas e dos seus
relacionamentos. No momento em que os alunos se confrontam com os reais problemas da sua existência, serão capazes de encarar a sua própria opressão. (Grundy, 1987, p. 105).
A ênfase nos conteúdos, na regimentação, na rigidez de tempos e ritmos de aprendizagem característicos do modelo do currículo como “produto”, “à prova do aluno” (o aluno não participa no processo) e “à prova do professor” (tal como um técnico, cabe-lhes apenas executar o programa), apenas servia os interesses do status quo, preparando os jovens para o mundo de produção capitalista (Smith, 1996). Igualmente explicada, opinam ainda os defensores desta perspectiva, a preocupação em exortar os efeitos “negativos” mesmo “perniciosos” do “currículo oculto”; para os adeptos da visão critica, a existência de um “currículo oculto” pode mesmo ter efeitos positivos e potencialmente libertadores, na medida em que ajude os alunos a desenvolverem conhecimentos e destrezas socialmente valorizados ou encoraje a formação de grupos de interesses e subculturas próprias,
pode contribuir para a autonomia pessoal e coletiva abrindo espaços para a critica, desafiando normas e instituições. (Cornbleth, 1990, p. 50).
Desde esta perspectiva, o professor deixa de ser um mero implementador das decisões curriculares tomadas a nível nacional e assume um papel mais ativo na tomada de decisões curriculares trabalhando não isolado, mas em equipas com outros professores (team teaching); na sala de aula, deve assumir essencialmente “um papel de orientador da aprendizagem e de coaprendiz” (Pereira, 1993, p. 29), fomentando o trabalho em grupo e criando uma atmosfera de trabalho colaborativo, em que o seu papel muda “qualitativamente” (Pretto & Serpa, 2001). Neste novo contexto, o currículo adquire um caráter interdisciplinar conducente à remoção das barreiras disciplinares e constrói-se a partir da práxis, numa interdependência entre todos os actores sociais em que se reconhece, “quer aos professores, quer aos alunos (organizados tanto uns como os outros em equipas) a
liberdade para negociar e determinar os conteúdos curriculares” (Silva, 1998, p. 47).
Esta visão do currículo como uma práxis identifica-se com um paradigma educacional semelhante ao esquematizado com a letra C na figura 1 (Pereira, 1993, p. 29): neste modelo comunicacional, o processo de ensino aprendizagem caracteriza-se pelo desenvolvimento das relações professor/aluno/aluno em torno de uma base do «currículo oculto» (hidden curriculum), sendo constituído “por todas as coisas que os alunos aprendem independentemente e à margem do que na escola é ensinado, não constando oficialmente nos programas ou mesmo na consciência dos responsáveis pela organização escolar” (Smith, 1996, p. 10).
Conhecimento tecnológico, tomando a base de dados, a experiência e o sistema pericial, a forma de programas hipermídia ou, ainda, de vastos hipertextos comunitários como é o caso da World Wide Web (WWW) (Dias, 2000).
No tocante ao papel dos média tecnológicos neste modelo de desenvolvimento do currículo, presume-se que sejam potenciais ferramentas ao serviço da emancipação dos diversos atores sociais, o implica responsabilizar e descentralizar o nível de decisões, uma vez que “é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção que se impõe a responsabilidade (...) a autonomia vai-se construindo na experiência de várias inúmeras decisões que vão sendo tomadas” (Freire, 1997 apud Patrocínio, 2001, p. 216).
A incorporação de escolhas/opções pessoais na arena educativa em particular, quando se utilizam as tecnologias da comunicação no processo de ensino-aprendizagem, é uma das características que são apanágio dos sistemas hipermédia e hipertexto; trata-se de sistemas tecnológicos capazes de promover ambientes de aprendizagem flexíveis, em que o aluno descobre e constrói o conhecimento promovendo a sua autonomia e sentido crítico, numa linha que se inscreve num paradigma educacional que valoriza o ensinar e aprender e o ensinar a pensar e a que Nisbet (1992) apelidou de “thinking curriculum”. A inserção destas tecnologias nas redes de comunicação para além de expandirem o diálogo para além dos muros da escola (Silva, 1998), permitem criar novos cenários educativos que “possibilitam a criação de contextos para a cooperação, necessárias para transformar a escola numa comunidade critica de aprendizagem” (Pacheco, 2001, p. 71).
Um modelo curricular para a ”perfeição”...
Fala-se hoje cada vez mais da necessidade da emergência de um novo paradigma educacional capaz de corresponder às complexas exigências de uma sociedade global. De fato, se antes a escola era um lugar em que os indivíduos se preparavam para a sociedade industrial, cujo centro de interesse consistia em “fazer coisas” – a produção industrial –, o sistema educativo atual encontra-se ante a difícil empresa de preparar os indivíduos para a sociedade da informação, em que um dos mais importantes objetivos é tratar a informação (Brigas & Reis, 2001).
Na sociedade global em que vivemos, o poder está na informação (Tofller, 1990; Castells, 2000) que nos chega em “fluxos”, “célere”, “descontextualizada” (Pacheco, 2001), veiculada pelos múltiplos mass media, provocando uma “sobrecarga informacional” que nos obriga a uma atualização constante a um ritmo de processamento cada vez mais rápido e a uma seleção cada vez mais cuidadosa, porque o que ontem era conhecimento, hoje está já ultrapassado (Lazlo & Castro, 1995).
Esta nova realidade social não poderia deixar de abalar o modelo clássico da escolaridade, onde o discurso permaneceu vertical (centrado no professor), contextualizado (na sala de aula, na escola), organizado de um modo segmentado (em disciplinas, por conteúdos), um “modelo de organização pedagógica que é a realidade escolar de hoje em dia: o grupo-turma a cargo de um professor para uma dada disciplina, durante o ano inteiro em local e hora préviamente fixada” (Silva, 1998, p. 395).
A educação escolar está em crise, diz então Area (2001), a escola que temos não se coaduna com a cultura digital que “obriga a formas de organização e processamento do conhecimento mais flexíveis, interativas e entrelaçadas que reclamam, por sua vez, por novos modelos de escolaridade” (Area, 2001, p. 3). Criticando o modelo curricular tradicional, considera Morin (apud Martins, 2001, p. 175), que as crianças aprendem a história, a geografia, a química e a física dentro de categorias isoladas, sem saberem ao mesmo tempo que a história sempre se situa dentro de espaços geográficos e que cada paisagem geográfica é fruto de uma história terrestre (...) aprendem a conhecer os objetos isolando-os quando seria também preciso recolocá-los no seu meio ambiente para melhor serem compreendidos. Uma tal visão do currículo não oferece aos alunos uma perspectiva ampla da realidade física e/ou social, da sua complexidade, da sua relatividade, assim como das possíveis interfaces que podem ser estabelecidas entre os vários campos do saber.
As novas configurações comunicativas da era digital, suportadas pelos sistemas multimídia interativos, pelas ligações em rede, não se configuram com a “linearidade, sequencialidade do currículo como um texto” (Pacheco, 2001, p. 73). Na era da globalização, das sociedades em “rede”, a comunicação mediada pelo computador gera uma gama enorme de comunidades virtuais (Castells, 2000), orientadas por afinidades e interesses comuns (Dias, 2000); em tais contextos, surgirão decerto novos processos de “influência educativa” (Area, 1996), novas formas de aprendizagem em que os alunos serão “cada vez mais fonte de mudança trazendo para a escola saberes que adquiriram fora desta, nomeadamente na posição de utilizadores das autoestradas da informação e obrigando-a a reajustar-se a esses novos saberes” (Lopes & Pinto, 1999 apud Pacheco, 2001, p. 71).
Estes novos cenários exigem uma abordagem holística ao processo educacional, que passa pela integração da tecnologia no currículo com vista a uma expansão do mesmo e a uma participação mais ativa dos alunos no processo de ensino-aprendizagem; para Pacheco (2001), só a emancipação do currículo como um hipertexto, organizado em redes de interface que são a base da construção do conhecimento, possibilitará que o currículo adquira um caráter interdisciplinar conducente à remoção das barreiras entre as disciplinas através da instauração de múltiplas conexões curriculares (cross-curricular connections), tomando corpo na realização de projetos baseados em temas comuns e relacionados com os interesses dos alunos.
Compreender a construção do currículo sob uma lógica hipertextual abre inúmeras possibilidades para a troca de ideias, de informações e de saberes múltiplos, diferentes, permitindo perspectivar o projeto curricular como “um espaço multirreferencial de aprendizagem, onde a multiplicidade sobre os objetos do conhecimento é o ponto de partida para o processo de aprendizagem e o fortalecimento da construção coletiva do conhecimento” (Martins, 2001, p. 175).
Desenvolver o currículo como um hipertexto equivale a implementar, pensamos, sob a forma de um projecto curricular, os ideais de um paradigma construtivista da aprendizagem.
Para Lazlo & Castro (1995), a chave desse novo paradigma educacional reside não apenas no facto de se centrar a aprendizagem no aprendiz, mas sobretudo na ênfase que se coloca na relação que o aluno mantém com a base de conhecimento.
A este nível, a TE tem novas e redobradas funções a desempenhar, como foi referido há pouco quando da análise do modelo comunicacional C da figura (Pereira, 1993, p. 29): a experiência e o conhecimento não são mais propriedade exclusiva do professor que abandona o seu protagonismo – ele é um coaprendiz (Pereira, 1993) –, e passa a ser um agente organizador e conceptor de situações de educação orientadas para a valorização da atividade mental do aluno e do seu relacionamento com a base do conhecimento (Bertrand & Valois, 1994; Lazlo & Castro, 1995). Redefinem-se os papéis do professor e do aluno; esses novos papéis misturam-se e identificam-se ao adquirirem uma responsabilidade conjunta.
A sala de aula deixa de ser um ambiente controlado, transformando-se num ambiente promotor da construção do conhecimento, da necessidade de aprender de uma forma constante e permanente baseada na investigação real, global, através das “autoestradas” da informação (Patrocínio, 2001). O trabalho toma-se colaborativo, porque fruto de uma negociação entre professores e alunos no sentido de uma construção social do conhecimento e toma corpo na realização de projetos baseados em temas comuns e relacionados com os interesses dos alunos; as várias disciplinas combinam-se em projetos temáticos que transformam o currículo numa poderosa estratégia de aprendizagem (Dwyer, 1995).
Para Brigas & Reis (2001), trata-se do único modelo desejável no quadro da sociedade global em que vivemos; para Patrocínio (2001), será a melhor forma das diferenças individuais e a diversidade cultural poderem ser usadas para enriquecer e reforçar o ambiente de aprendizagem no sentido do desenvolvimento da tolerância e da aceitação da diferença.
Na opinião de Pretto & Serpa (2001), só então fará todo o sentido falar-se numa nova pedagogia, A Pedagogia da Diferença, que se estrutura a partir do diferente na diferença, enfatizando as singularidades, tanto de natureza espaço-temporal como no âmbito das subjetividades. Este será o novo papel do professor e esta deverá ser a nova escola no mundo contemporâneo: uma escola centrada nos homens e nas mulheres, enquanto expressões do ser humano (Pretto & Serpa, 2001, p. 31).
Que concluir em jeito de síntese?
„.Ponto 1: Temos uma educação de imprensa num mundo audiovisual e tecnológico (Bartolomé, 2005).
„.Ponto 2: Na era da globalização, que para muitos se confunde com uma nova era, a do conhecimento, a educação é tida como o maior recurso de que se dispõe para enfrentar uma nova estruturação do mundo. Ela depende da continuidade do atual processo de desenvolvimento econômico e social, também conhecido como era pós-industrial, em que notamos claramente um declínio do emprego industrial e a multiplicação das ocupações em serviços diferenciados: comunicação, saúde, turismo, lazer e informação. Neste contexto, a educação e a formação para a utilização educacional das TIC é elemento decisivo no desenvolvimento e inovação do currículo (Area, 1996), na reorganização dos processos de aprendizagem e na modificação global do modelo de ensino (Pacheco, 2001).
„.Ponto 3: As TIC, qual trave-mestra na nova sociedade do conhecimento (Ponte, 2001), proporcionam uma relação de tipo novo com o saber capaz de contribuir para a formação de “cidadãos mais criativos, mais reflexivos, mais competitivos e mais habilitados para a mudança no actual contexto da globalidade localizada e para o progresso, para a intervenção e para a transformação social” (Patrocínio, 2001, p. 216).
„.Ponto 4: Para que a escola responda adequadamente aos novos desafios que se lhe colocam, TE e Currículo terão de se aproximar porque as responsabilidades são conjuntas: se a teoria curricular tem uma palavra a dar já que se trata do currículo escolar, “do mesmo modo a Tecnologia Educativa tem muito que dizer, porque as tecnologias no processo educativo são os seus cartões de identidade” (Valero Rueda, 2001, p. 263). Para Area (1996) e também Valero Rueda (2001), a solução passa pela criação de um espaço epistemológico que, integrando os contributos da Tecnologia Educativa e da Teoria Curricular, reflicta e proponha alternativas para os novos problemas que se levantam à educação escolar no contexto das sociedades da informação.
„.Ponto 5: Como caracterizar então o modelo curricular para a era digital, para a estrutura informal da comunicação global numa sociedade em “rede”?
Em primeiro lugar, trata-se com certeza de um modelo que entende o currículo tanto como um processo, como uma práxis (influência das teorias prática e crítica); como um processo, porque, de acordo com a teoria prática, se trata apenas de uma proposta que pode ser interpretada por professores e alunos de diferentes modos, de forma negociada, interativa, recusando a aceitação tácita de um “fazer sentido” imposto desde fora (pelo curriculo oficial); como uma práxis, porque de acordo com a teoria critica, o conhecimento é um processo construtivo que emerge de situações e contextos específicos que são filtrados ideologicamente, sendo que a dimensão política do conhecimento pode ser reforçada pela dimensão tecnológica, uma vez que a tecnologia “age sobre a informação” (Castells, 2000, p. 78), podendo tornar mais desiguais as possibilidades de acesso ao
conhecimento (Dourado & Pacheco, 2001, p. 148).
A concepção do currículo como um hipertexto (Landow, 1992; Martins, 2001; Pacheco, 2001) é talvez a mais feliz metáfora para um modelo curricular do novo “mundo digital” (Negroponte, 1996). Para Brigas & Reis (2001, p. 115), “o quadro da globalização é solidário de um paradigma inter e transdisciplinar”; a aposta na inter e transdisciplinaridade, a remoção das barreiras entre as disciplinas através da instauração de múltiplas conexões curriculares (cross-curricular connections) em que as várias disciplinas se combinam em projetos temáticos, possibilitando que as diferenças individuais e a diversidade cultural possam ser usadas para enriquecer e reforçar o ambiente de aprendizagem no sentido do desenvolvimento da tolerância e da aceitação da diferença condições base para o exercício de uma cidadania responsável (Patrocínio, 2001).
Num tal contexto, as potencialidades educativas dos sistemas hipermídia e hipertexto (incluídas as suas ligações a redes de telecomunicações) assumem-se como a ferramenta tecnológica ao serviço da construção de um novo paradigma educacional, de clara opção construtivista (Pereira, 1993) que se operacionaliza na criação de ambientes de aprendizagem flexíveis (Dias, 2000) adaptados aos estilos e ritmos de aprendizagem individuais (Sousa, 1996), em que se redefinem os papéis do professor e do aluno (Martins, 2001; Ponte, 2001), e se entende a educação/formação como um processo permanente, aberto em que o conhecimento será o novo poder (Toffler, 1990; Valero Rueda, 2001), cabendo à escola a tarefa de combater a info-exclusão, condição sine qua non para a construção de uma autêntica sociedade do conhecimento (learning society) (Patrocínio, 2001).
„.Ponto 7: A formação de professores é a pedra angular em todo e qualquer processo que envolva a integração/utilização/contextualização curricular dos média (Moderno, 1992; Férres, 1994; Coutinho, 1995; Area, 1996; Machado, 1996; Ponte, 2001; Pretto & Serpa, 2001; Coutinho, 2005). Como refere Silva (1998, p. 209), “o professor é o principal protagonista sobre quem recai a última palavra na integração dos média”; sem ele não faz sentido pensar em reforma ou mudança educativa. Elaboração de Projetos 114 Relativamente ao “tipo” de formação, a maioria dos autores coincide no referente a dois aspectos essenciais que devem constar da formação docente na área das tecnologias da informação e comunicação: dominar os aspectos técnicos (manipulação, rotinas de operação e modos de produção), bem como os aspectos pedagógicos da utilização das TIC em contexto pedagógico (Moderno, 1992; Escudero, 1992; Hannafin & Savenye, 1993; Ferrés, 1994; Coutinho, 1995; Area, 1996; Silva, 1998; Ponte, 2001; Pretto & Serpa, 2001).
Na opinião de Pretto & Serpa (2001), sem uma correta (e atempada) integração e valorização da componente pedagógica na “alfabetização digital” dos professores, corremos o sério risco de reforçar o “analfabetismo funcional digital”, aumentando o fosso entre os que acedem (ou não acedem) à informação e ao conhecimento.
„.Ponto 8: Se a formação de professores é fator que condiciona um uso pedagógico adequado dos média, também é certo que a disponibilidade e as dificuldades no acesso aos meios tecnológicos nas escolas afeta a utilização didática dos mesmos (Escudero, 1992; Area, 1996; Silva, 1998; Ponte, 2001). Dito de outro modo, a inadequação das estruturas organizativas e infraestruturais das escolas afetam negativamente a integração curricular dos novos média tecnológicos. Na opinião de Area (1996, p. 11), a cultura organizativa dominante na escola tem-se caracterizado pela “fragmentação, isolamento, individualidade e ausência de experiências partilhadas”. Optar por uma renovação pedagógica das mesmas implica: (i) uma mudança de atitudes no sentido de os diferentes “actores” do processo educativo aprenderem a compartilhar espaços comuns como a biblioteca, a mediateca, a sala de informática, ou os centros de recursos; o desenvolvimento de práticas caracterizadas pela coordenação, intercâmbio e preparação conjunta (team-teaching) de experiências e projectos pedagógicos inovadores que perseguem a integração curricular pela partilha de espaços e tecnologias; (ii) o assumir, por parte da escola, na filosofia do seu projecto educativo, a necessidade de introduzir (e potenciar) novos modos de expressão individuais e coletivos.
„.Ponto 9: Por último, no contexto da sociedade da informação em que vivemos acredita-se cada vez mais que só promovendo a alfabetização “informacional” (Oliveira & Blanco, 1998) ou “digital” (Pretto & Serpa, 2001), só criando condições de igualdade no acesso à informação a escola assumirá a verdadeira função social que hoje lhe cabe é solicitada. Numa sociedade globalizada, onde “a distância não é principalmente a geográfica, mas a econômica (ricos e pobres), a cultural (acesso efetivo à formação contínua), a ideológica (diferentes formas de pensar e sentir) e a tecnológica (acesso e domínio ou não das tecnologias de informação” (Moran, 1997, p. 146), considera-se hoje que a função da escola contemporânea se deve orientar para provocar a organização racional da informação fragmentada recebida e a reconstrução das concepções acríticas formadas pela pressão social reprodutora do contexto social, através de mecanismos e meios de comunicação cada vez mais poderosos (Area, 1996). Só assim a escola poderá ajudar os jovens no correto exercício da cidadania (Patrocínio, 2001), motivando-os no sentido de tomarem consciência do papel dos média na vida social e dando-lhes a conhecer os mecanismos técnicos e a simbologia através dos quais os média provocam sedução no espectador:
a) promovendo critérios de valor que ajudem os alunos a discriminarem e selecionarem os produtos de maior qualidade cultural e b) trazendo à luz os interesses econômicos, políticos e ideológicos que estão por detrás de todo o empreendimento ou produto mediático (Area, 1996). Estas são questões que interessam tanto à TE como ao DC; uma ação concertada de ambos os domínios contribuirá decerto para que a escola recupere da perda evidente da sua influência cultural e ideológica em favor dos mass media (a problemática da “escola paralela”), ajudando a formar cidadãos mais cultos, responsáveis e críticos, porque não podemos esquecer que na sociedade da informação, o acesso ao conhecimento é condição necessária para o exercício consciente da liberdade individual e para o desenvolvimento pleno de uma cidadania democrática (Area, 1996), pedra angular num novo paradigma educacional (Patrocínio, 2001) em que as TICE são elementos estruturantes de uma nova forma de pensar e de aprender (Pretto & Serpa, 2001).
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